Quantos “Eus” conseguirei salvar?

Qual o melhor caminho para se realizar uma Publicação? Publicar significa “tornar (algo) público, amplamente conhecido; divulgar, propagar”. Neste sentido, como é possível mensurar a forma mais eficiente para se publicar? Acredito que somente a subjetividade de cada autor, atrelada às influências de sua época, é capaz de fazê-lo. Mas, mesmo sob esses parâmetros, será que o autor conseguiria alcançar em essência o objetivo que o induziu a querer publicar-se?


Quem poderia questionar a eficácia da tradição africana de propagação oral de suas narrativas que fez a mitologia dos Orixás ser conhecida após cinco mil anos de sua criação? Qual suporte de difusão humano poderia ser considerado mais efetivo do que as inscrições rupestres, que possibilitaram a alguns “homens das cavernas” se comunicarem com muitos povos contemporâneos, mesmo estando mortos há mais de 45 mil anos? Apesar do êxito, também é possível elencar várias desvantagens dessas formas de publicização, bem como as de quaisquer outras maneiras de tornarem-se públicas as ideias, os pensamentos, as reflexões e as criações humanas, incluindo-se, nesse leque, todas as mídias e os meios de interlocução da atualidade.


Para um escritor, antes de publicar, é sim importante conhecer várias possibilidades de publicação e suas respectivas vantagens e desvantagens. Todavia, muito mais imperioso do que apontarmos as imperfeições de cada opção, é podermos descobrir as motivações que nos levam a optar por uma delas. Se analisarmos bem, existem dois principais motivos para que o ser humano queira publicizar as suas visões de mundo: o primeiro é conseguir transmiti-las aos seus pares, e o segundo, mas não menos importante, é fazê-las atravessar as barreiras do tempo.


Ao humano primordial, como o das inscrições rupestres por exemplo, parece que não importava a autoria, mas a simples transmissão de sua criação. Entretanto, ao “indivíduo” – um humano fruto de revoluções sociopolíticas que o transformaram em um cidadão autônomo, destacado da esfera social, e que o dimensionaram enquanto ser singular e insubstituível –, não basta mais que a sua obra seja transmitida para bilhões de pessoas ou que consiga sobreviver às intempéries dos séculos e milênios. Nessa nova configuração de humano, ser apenas um criador passou a ser insuficiente; hoje, é crucial ser, principalmente, “O Autor”. Mas essa tese da necessidade de autoria, enquanto motivação universal para todos os seres humanos contemporâneos, não conseguiria se sustentar se entrássemos por um minuto apenas na internet e observássemos a quantidade de criações anônimas; dessa forma empírica, poderíamos constatar que, para muitos criadores, a criatura em si se basta, sem a necessidade de reconhecimento de vínculos. Então, o que leva um humano a querer tanto se expressar ao ponto de abrir mão de sua maternidade, contanto que sua obra seja transmitida de alguma forma?


A necessidade de transmissão não é algo exclusivo do Homo Sapiens. Ao observar a proteção de uma gata para com a sua cria ou a sua tentativa de ensiná-la a lamber-se de forma mais eficiente, posso perceber na felina a mesma necessidade instintiva que uma humana teria em transmitir a sua experiência para o seu filhote ou a sua hereditariedade para a posteridade. Ambas as mães protegem algo que representa a postergação de uma parte de si mesmas. Parece-me, por isso, natural uma certa insubmissão da vida em relação à morte. É bastante razoável que a necessidade de se perpetuar através de uma publicação surja também dessa dificuldade de aceitação da finitude.


Agora mesmo, olhando pra mim, fico imaginando quantas células podem estar morrendo para que outras as substituam? Da mesma forma, quantos “Eus” subjetivos morrem e nascem a cada emoção, a cada novo pensamento? Vista assim, a morte parece apenas uma renovação da vida. A tradição oral é assim. No entanto, a criação que exige ser escrita e publicada se recusa à tal renovação. É obra que muda de suporte e permanece imutável. É capaz de mudar muita gente que encontre pelo seu caminho. Mas sua natureza é eterna.

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  1. Estou há alguns minutos aqui procurando uma palavra para descrever a sensação causada por esses texto e não a encontro. Acabo de me perguntar se minha dificuldade não é exatamente a repercussão que a autora sugere. Esse é um texto que é capaz de mudar gente pelo caminho.

    Mas não é um novo estado das coisas o que um bom texto procura, e sim a mudança difusa, imprecisa, imprevisível e assíncrona, assim como é o infinito.

    Não são todos os textos capazes de provocar a mudança, ou seria essa uma capacidade do leitor? Enfim, o que me parece certo é que esse é um atributo especial do texto poético, aquele texto que mesmo em prosa é capaz de transportar o leitor para uma nova versão, ou visão, do seu mesmo velho mundo.

    Assim, este belo texto já cumpriu seu papel. Já não preciso procurar pela palavra, é eterno.

  2. Acabei de ler achei incrível a essência da arte rupestre em que a expressão é o foco não a necessidade de ter um “autor” sendo “notado” por isso foi o que mais me chamou atenção posso não ter entendido na íntegra a síntese de todo o texto mas o que saltou aos meus olhos é perceber que a mensagem é superior ao mensageiro e o que se eterniza é o provocar e acrescentar algo tornando a publicação um tesouro a ser contemplado e não apenad se enaltecer o “rei” (que poderá até a não ser conhecido) que o possui embora a fonte torna se muito importante para que esse tesouro exista mas o conteúdo torna se maior em sua grandeza porque idéias se sobressaem e surtem mais efeitos que o meros egos de “alguém” que tem sua incrível importância também,mas deixar o legado de idéias é mais sucinto do que apenas um nome embora naturalmente acabe acontecendo mas o mais importante é voltar o olhar para o lugar que contenha mais essência ! Não sei se era esse o contexto todo abordado…
    Mas o mesmo me fez refletir muito !! E textos assim fazem total diferença em nossa imersão individual Bravooo a excelente autora !!

  3. Que texto maravilhoso e gostoso de ler! Lembrou-me do filme “Guerra de Fogo”, de alguns textos teóricos sobre autoria, quando um se faz autor porque leu outro autor e disso fez referência na produção autônoma. Consegui claramente pensar na evolução da autoria em uma linha diacrônica.
    Digo, que seu texto, contribuí para nós escritores, uma reflexão dos efeitos da escrita nos meios sociopolíticos, sobre a importância da reflexão da evolução de autoria.
    Assim, fiquei com a pergunta: O que queremos com nossos registros? Obrigada por compartilhar seus pensamentos! Fiquei maravilhada! Parabéns!

  4. “Parece-me, por isso, natural uma certa insubmissão da vida em relação à morte. É bastante razoável que a necessidade de se perpetuar através de uma publicação surja também dessa dificuldade de aceitação da finitude.”

    Esse trecho me pegou de jeito… precisei rever vários conceitos e motivações sobre o que me leva a escrever, e o motivo pelo qual escrevo… E quando achei que estava chegando numa conclusão, o texto me mostra que na verdade esse era apenas mais um “eu”, de muitos que se constroem a cada dia. Amanhã serei outro, com outras conclusões, (espero eu) melhores que as conclusões de hoje.

  5. Comecei a ler seu texto e a interagir. Destacando o trecho “Agora mesmo, olhando pra mim,…”, aproveito para revisitar meu processo, que iniciou em outubro de 2022, para a retirada de um tumor e, amanhã, dia primeiro de março, fecha um ciclo de doze semanas com doze quimios. Posso deixar registrado que esse processo é realmente um processo de luta, de transformação, de superação. Muito mudei e para melhor. Minhas percepções e emoções me enriqueceram como nenhuma outra experiência. O que não mudou foi minha essência sonhadora. Sigo mantendo viva a energia misteriosa que me motiva sonhar e fortalecendo a mágica do pensamento positivo. Sigo documentando tudo que estou vivenciando.

  6. O texto parte de uma boa questão: “por que dar a público nossa criação?”, mas levanta dois pontos como sendo os principais, senão bastantes. Há outros como a manutenção da história, a renovação do contexto sócio-histórico atual, os projetos de utopia, a revigoração da subjetividade e das relações interpessoais. Além disso, o final do texto destoa da premissa inicial, indo para uma argumentação (justa) que é de outra clave.
    Creio que falta rever a coerência da explanação.
    No entanto, gostaria de parabenizar pela iniciativa da proposição e o feliz início da mesma. Abraços.

  7. Maravilha de texto Cris! Escrevemos para não morrermos mais? Escrevemos para nos curar? Para curar o próximo? Para ambas as coisas? Escrevemos para fazer uma revolução? Ou para deixar tudo como está? Pode ser tudo isso ou outra coisa, nada a ver com isso… Mas eu tenho certeza que escrevemos para despertar emoções nos sentidos e na mente e um texto reflexivo desses cumpre sua missão e vai além, leva ao questionamento da alma inquieta do escritor, narrador, contador de histórias: melhor a oralidade, melhor a escrita? Melhor a vida que nos proporciona todas essas belezas e questionamentos. Obrigado pelo texto amiga, abraço! E te falar: não tenha mais dúvidas, continue escrevendo sempre!

  8. Amo escrever. Escrevo com o corpo, com as artes visuais, danço e pinto palavras…No entanto, mesmo que confesse desejar que tudo isso que me inquieta e faz mover atos para criar e expressar pudesse ecoar hoje, amanhã e em vindouros tempos, uma parte minha se sente tão ínfima e tão pequena como se nada de tudo isso fosse eterno, ou eternizável.
    Mas cá estamos, você, eu e tantas pessoas se perdendo (ou se encontrando) em palavras.
    A razão perde para este pulso não é mesmo, Cris?
    Sejamos então todos loucos, loucas e louques!!!
    Belas palavras.
    Um abração dançante!!!

    Vant Vaz

  9. Esse texto me desperta e me paralisa, onde penso em ser finito ou infinito nessa existência, e me reforça uma questão particular do que somos e do que somos capazes de deixar de nós ao mundo e ao outro.
    Mas o que cabe no outro enquanto o que será finito é infinito dentro dele? Estamos em tempo de comunicações que alcançam a imagem, o audível, são tantas informações e nesse momento me surge uma questão o que será nos tempos futuros que irá se propagar e se perder no tempo?… já me sinto perdida num tempo de tantas informações que não se prendem a nossa alma, apenas passa despercebido.

  10. — Belo texto e argumentação sobre “a teoria de tudo?!” Se é que cabe a comparação?!…

    — Cristiane Fragoso, com quem tive o prazer de interagir remotamente, nos deixa bem claro sobre — os tantos “Eus” — e suas/nossas questões e vai bem mais longe, assim como mergulha na história da comunicação humana, através do tempo. Com isso ela nos “provoca” e nos dá a possibilidade de sentir o sangue vermelho que nos corre as veias, antes e até mesmo que no tempo das só larvas vulcânicas, até o — instante do ato — do dia de hoje, quando digito e publicito meu pensar, sobre essas células que morrem e se renovam, dioturnamente em mim. No meu Eu, em meu 🌎 mundo!!…

    — Grato por trazer ao coletivo e ao social o compartilhamento do mesmo ar que respiramos e inspiramos, nessa “dança louca” de se estar Vivo, no —>#Aqui_AGORA!!<— Único lugar possível de haver vida inteligente.

    — Não é atoa que o tempo no espaço, denominado de 🎁 PRESENTE, é em si mesmo um!!…

    Parabéns por me ajudar à refletir sobre temas tão profundos, necessários e relevantes de nossa natureza.

    #Aho,
    .
    . .
    hds

  11. Boa tarde minha linda! Ainda não consegui ter um relacionamento diário com o Instagram como tenho com outras redes, por isso as vezes demoro a ver as postagens.
    Amei o texto, aliás, coincidentemente, ontem participei de discussão com uma turma de 9° ano exatamente sobre o que você discute no texto. Quanto as conclusões da discussão, também foram muito parecidas. Beijos! Beijo pra Norma também.

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