O último chá

 – Eu não devia ter vindo.

Ficaram em silêncio por alguns minutos. Mario bastante desarranjado com a fala ríspida e inoportunamente sincera de Bia.

– Por conta da pandemia?

– Não.

Os dois se olharam em silêncio por um segundo que mais pareceu anos.

– Por sua conta mesmo. – Continuou ela.

Bia sentia-se surpresa com a sua coragem em assumir aquela dor nada inédita e Mario desejava absurdamente que ela voltasse atrás no que disse, pois suponha o que ela queria dizer. Mas como pedir alguém para voltar no tempo? Seria um pedido justo?

– O céu está demorando para escurecer hoje. Não é você que ama esse horário do dia? – Perguntou ele.

– Lusco-fusco.

– Isso!

O dia realmente se demorava. Bia levantou e ficou alguns segundos olhando pela janela numa rápida vigília, gostar do céu para ela era como gostar de respirar, mesmo assim tentou explicar.

– Essa é minha hora preferida do dia porque está escuro demais para dizer que é dia, mas está claro o suficiente para as luzes dos postes continuarem apagadas. Eu gosto dessa transição… transições… eu gosto. Quando as coisas já não são o que eram antes, mas também não são o que vão se tornar. Acho que é nosso estado natural… nascer. Passar a vida toda tornando-se humano. E morrer. Vai ficar aí calado só ouvindo minhas filosofias baratas?

– É que a minha hora preferida do dia é te ouvir falar.

Mario ainda estava escutando o eco da frase “por sua conta mesmo” e seu instinto era de lutar contra, mudar de assunto a todo momento até que o som sumisse. Mas geralmente os humanos tomam decisões que vão em direções opostas ao lugar que desejam chegar.

– O que você quer me dizer?

– Que estou me sentindo como se tivesse me salvado de um naufrágio, mas acordado perdida numa ilha deserta.

– E como essa ilha é?

– É a sua cara – respirou – Ela é bonita e só eu sei que faz frio, mas não o suficiente para ter hipotermia.

– Ser sobrevivente de um naufrágio é ganhar uma segunda chance. Dificilmente alguém consegue.

– O corpo humano é frágil.

– Pra lembrar a Deus de nos redimir.

– Ou de nos castigar… você é muito cristão né.

– Acredito que precisa existir algo depois, que essa vida aqui não basta.

– Acredita em paraíso e inferno?

– Não, não gosto da ideia de que a gente possa ser julgado por essa passagem mixuruca aqui na terra.

Os dois tinham uma necessidade gigante de fugir do assunto como o diabo corre da cruz e o céu não pode mais esperar. Bia percebeu que o breu absoluto tomava conta da atmosfera e obviamente era uma noite sem lua, luas não combinam com despedidas. Mario se conteve em pegar xícaras e colocar chá quente para os dois, estratégia que aprendeu como sua mãe: ocupar a boca para não falar besteiras. Quando foi interrompido por Bia apontando para seu último quadro.

– A primeira vez que vi sua pintura, achei genial, autêntica, revoltada, um pouco inquieta… incrível.

– Está falando da pintura ou de mim?

Bia quase riu, mas hesitou.

– Eu te admirava.

Usar verbos no passado é um risco que ela decidiu correr. Quando se tem uma história com alguém o único tempo verbal admitido é o futuro, até mesmo o presente é ignorada e aí mora o perigo.

– Hoje quando eu o olho, percebo que a maioria das pinceladas são extremamente ruins.

– Com açúcar? – Mario disse oferecendo a bebida.

Bia demorou a entender de qual açúcar ele estava falando, perdendo totalmente a sua linha de raciocínio, aceitando o chá sem saber se realmente queria bebe-lo, conseguindo apenas recusar o açúcar. Seu chá então se transformou no mais amargo possível e era bom ter algo para reclamar, chás são complicados, sempre achou isso. Aprendeu a tomar a bebida com ele em longas tarde regadas a chás, conversas, risos e intromissões de Bruna, – a namorada dele. Bia não aprendeu apenas a engolir chás, aprendeu também a engolir mentiras e digerir encontros rápidos, tudo o mais ácido possível. Sem açúcar. Sem verdades. Sem futuro. Bia começou a andar pelo quarto segurando a chávena e a cada gole se despedia do gosto das ervas, pensava que era a última vez que beberia, estava nua e mesmo sabendo que ele a observava deixou que assim fosse. Encontrara nessa noite alguma força interna para dizer não as migalhas que ganhava do amor da sua vida, só ainda não conseguia falar olhando naqueles olhos lindos. A vida parece ser mais fácil para alguns, principalmente para aqueles com os olhos translúcidos. Mas ela decidiu tentar, virou-se de súbito para Mario e estrondou.

– Eu odeio chá!

Desviou o olhar imediatamente com medo de que parecesse estar mentindo. Mas era tarde: foi a frase mais falsa já dita, pois ela não estava falando do chá.

– Eu odeio sim, odeio o cheiro, odeio a cor e eu não voltarei a bebê-lo. Eu apostei com todas as minhas amigas e detestaria perder. – vomitou as palavras de uma só vez.

Já Mario, adoraria que ela perdesse a aposta. Mas ele sabia que ela não estava falando de chá.

– Não comprarei mais chás. – Brincou, tentando fugir daquela sentença.

– Pode comprar! Você pode beber, pode chamar a Bruna para beber, pode ensinar seus futuros filhos a tomar, pode tomá-lo com outras… Só não tomaremos mais juntos.

– É isso? – Perguntou quase desafiando-a.

Por mais que ele amasse Bia, ele amava mais a si mesmo. O que devia ser o certo, amor próprio em primeiro lugar. Mas o amor que ele sentia por si mesmo, não era esse tipo de amor. Era o amor que o sol sente por si mesmo. O sol se ama porque sabe que é o astro mais luminoso do universo. Mario sabia que era o homem com os olhos mais translúcidos do universo. Era assim que ele se amava.

– Nunca mais beberei chá com você. – Prometeu Bia.

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