Prioridades

Nunca na vida Beatriz esteve tão aliviada de chegar em casa. Ela corria o máximo que podia, considerando que carregava praticamente o peso todo de sua irmã apoiado no ombro. O ferimento enorme que ela tinha na perna a impedia de conseguir caminhar por conta própria. Assim que entrou no prédio em que ficava seu apartamento, viu os vizinhos correndo frenéticos, carregando móveis para o que parecia ser um princípio de uma barricada na entrada. Ainda bem que conseguiram entrar antes que eles fizessem isso. A porta do apartamento térreo que ela dividia com a namorada estava aberta, e assim que entrou Beatriz a viu falando com alguns vizinhos para levar a mesinha de centro para colocarem junto dos outros móveis que estavam juntando. Em qualquer outro momento Bia teria rido, Rebeca nunca gostou daquela mesinha, era óbvio que iria se livrar dela na primeira oportunidade possível.

— Meu Deus do céu, Maju! — Rebeca correu para ajudar Beatriz a carregar Maria Júlia, sua irmã. Agora que conseguiram se acalmar um pouco, o estado de sua perna não parecia tão grave quanto achavam, mas ainda era preocupante. Elas ajudaram Maria Júlia a se deitar no sofá, o corte enorme que ia desde perto do joelho até o tornozelo já estava manchando de sangue a manta colorida embaixo dela.

— Um desses troços quase atacou a gente — Beatriz explicou. — A nossa sorte é que um maluco de carro atropelou ele. Você sabe se o Murilo está por aqui?

— Está, sim. Vou chamar.

No momento em que Rebeca saiu, Beatriz desabou no chão. Encostou as costas no sofá, respirando fundo enquanto tentava se acalmar. Barulho as cercavam por todo lado. Os vizinhos a alguns metros fechando a entrada, carros correndo a toda velocidade na rua lá fora, uma televisão ligada ao fundo. As imagens na TV mostravam o que estava acontecendo, mas elas não precisam ver para saber como estava a situação.

— … Ainda não se tem informações sobre essas criaturas extraterrestres, — a repórter falava de fundo enquanto eram mostradas imagens da gigantesca nave que pairava no céu da cidade, vídeos de celular das pessoas correndo dos monstros nas ruas — nem quais são suas intenções na Terra…

— Eu já sei as intenções deles — Maju falou com a voz fraca. — Pelo menos do que passou pela gente. A intenção dele era levar um pedaço da minha perna pra casa.

— Ainda bem que ele não conseguiu, né? — Beatriz segurou o nervosismo para ele não transparecer na voz, mas não sabe se conseguiu. O rosto de Maria Júlia estava mais pálido que ela achava ser seguro.

— Sim. Essa é minha perna favorita.

Bia tentou rir da piadinha, mas ainda era cedo demais para isso.

Barulhos vindo do corredor anunciaram a entrada de Rebeca no apartamento, seguida de Murilo. Ele era um vizinho do segundo andar que estava no último ano do curso de enfermagem na faculdade. Ele carregava um kit de primeiros socorros. Sem nem cumprimentar ninguém direito, já começou a cuidar do machucado na perna da Maju, e Beatriz levantou-se de onde estava para dar espaço.

— Tem muitas pessoas machucadas por aqui? — Perguntou para Rebeca quando se aproximava de onde estava encostada na parede.

— Não. Só o Guilherme que torceu o pé enquanto corria pra cá. Mas o Murilo já deu um jeito de imobilizar o pé dele.

— Todo mundo está por aqui?

— Não. A dona Márcia não está em casa. A gente espera que ela esteja com a filha, mas ninguém conseguiu falar com ela. Depois de terminar de fechar a porta da frente, o Lucas sugeriu dar um jeito de proteger as janelas também. Talvez, sei lá, pegar tampo de mesa ou porta de guarda roupa e pregar tudo. Não sei se vai dar muito certo, mas…

A fala de Rebeca foi interrompida pelo celular de Beatriz tocando. Imediatamente ela o tirou do bolso, achando ser algo importante, talvez uma ligação de sua mãe. Mas o nome na tela era o último que ela esperava ver nesse instante. “Luciana”.

— Por que sua chefe está te ligando? — Rebeca espiava a tela do celular, tão confusa quanto Bia ao ver aquele nome.

— Talvez seja alguma emergência.

Assim que atendeu a ligação, Beatriz pode ouvir o caos do outro lado da linha. Eram coisas sendo arrastadas, pessoas gritando ao fundo. E, mais alto que tudo isso, a voz aguda de sua chefe.

— Beatriz? Onde você está?

— Em casa? — Não era para a palavra sair em formato de pergunta, mas Bia estava tão confusa e sobrecarregada com tudo o que estava acontecendo que nem notou.

— Mas ‘tá na hora do seu turno. Preciso de você aqui no mercado urgente.

Beatriz olhou para Rebeca, que tinha se aproximado para ouvir a conversa, a confusão do seu rosto refletido no dela.

— Dona Luciana, a senhora não viu o que está acontecendo?

— Mas é claro que vi, garota. — O tom de voz era daquele que se usa com criança teimosa. — É por isso que eu ‘tô te chamando. Um monte de gente tá querendo pegar comida pra se fechar em casa, mas você acha que a gente ia deixar esse bando de desordeiro roubar meu mercado? De jeito nenhum. Fechamos a porta e estamos deixando entrar aos poucos. Graças ao bom Deus que no começo desse ano meu marido e meus filhos conseguiram o porte de armas, então eles estão protegendo a entrada e saída. É só por isso estamos conseguindo manter ordem aqui. Mas com esse povo todo, não tem funcionários suficientes no caixa pra receber os pagamentos. Eu já tentei ligar pra Cris e pra Tainá, mas nenhuma das duas atende o celular.

Beatriz tirou o celular do ouvido para olhar a tela novamente, querendo confirmar se aquele era o número certo. Só podia ser um trote, não é? Demorou tanto para processar o que sua chefe disse e formular uma resposta, que ouviu um “ei, ainda tá aí?” do outro lado da linha.

— Dona Luciana, tem alienígenas andando nas ruas, atacando as pessoas. Minha própria irmã foi atacada. E você quer que eu arrisque minha vida e saia para ir aí?

— Sinto muito pela sua irmã, garota, mas a gente tem que garantir o nosso aqui. E você também deveria pensar mais em garantir o seu.

— Mas está todo mundo desesperado, tentando se proteger em suas casas. Você também deveria tentar se…

— Que nada, Beatriz — Luciana interrompeu. — Esse povo aí tá tudo fazendo escândalo por nada. A gente nem sabe o que esses bichos querem. Vai que eles são que nem os ETs daquele filme com o cara bonitão de Missão Impossível e vão tudo morrer daqui a três dias. Imagina se eu largasse tudo aqui e deixasse as pessoas roubarem meu mercado, só para isso acontecer. O prejuízo que eu vou ter.

— Dona Luciana, acho que isso não é o…

Sua fala foi interrompida pela chefe gritando com alguém do outro lado da linha.

— Olha, Bia. — Luciana continuou como se Beatriz não tivesse dito nada. — Não precisa se preocupar, você vai estar protegida aqui. Tem meu marido, meus filhos. E eu li em um grupo do whats que esses bichos tem medo de água sanitária. Já joguei um monte na entrada da loja, vai ficar tudo bem. Lembra o que eu sempre te digo, Bia, pessoas de sucesso enxergam desafios como oportunidades, e isso aqui pode ser uma oportunidade para aqueles que aproveitarem…

— Eu me demito.

Luciana ficou em silêncio ao ouvir isso, como se não conseguisse acreditar no que Beatriz acabou de dizer. O silêncio de Bia também era pelo mesmo motivo, não conseguia acreditar no que acabou de ouvir.

— Bia, não se precipite. As coisas não estão tão graves assim, pense na oportunidade…

— Não, eu me demito.

Beatriz ouviu Luciana respirar fundo algumas vezes do outro lado da linha. Achou ter ouvido ela xingando em voz baixa, mas com o tanto de barulho em volta era difícil dizer.

— Bom, como eu acredito que você não pretende cumprir aviso prévio, espero que você esteja ciente que eu vou ter que descontar da sua rescisão e…

— Vai se fuder — e desligou a ligação.

Rebeca olhava para ela com uma expressão que era metade querendo soltar um palavrão e metade segurando o riso.

— Faz tempo que eu queria falar isso pra ela — Beatriz disse, se permitindo um pequeno sorriso.

— É, e faz tempo que eu falo pra você falar isso pra ela — Rebeca riu com gosto.

As duas se sentaram no chão, com as costas escoradas na parede, enquanto dividiam uma garrafa de água. Murilo ainda estava tratando da perna de Maju no sofá, mas pelo menos ela não estava mais sangrando tanto. Os vizinhos ainda corriam para cima e para baixo no corredor do prédio.

— Não acredito que pedi demissão — Beatriz falou depois de alguns instantes em silêncio. — E eu demorei tanto para conseguir esse emprego, provavelmente vai demorar mais para conseguir outro.

— Ow, cabeção! — Rebeca deu um tapa no braço de Bia. — Tem uma invasão alienígena acontecendo. Depois você se preocupa em arrumar um emprego novo.

— É, tá certo.

Mais um momento em silêncio, enquanto tentavam organizar os pensamentos, fazendo uma lista de quais deveriam ser seus próximos passos. Ver o quanto de comida tinham, entrar em contato com os parentes para ver se estavam bem, fechar as janelas, verificar se tinham os equipamentos para fazer isso. E então…

— Beca?

— Hm?

— Você acha que a gente ainda vai ter que pagar a conta de luz esse mês?

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