Os primeiros raios do dia, junto com a sinfonia das buzinas, se moldam em alquimia, me fazendo despertar do meu sono. Já não sonhava mais, e nem fazia questão de fazê-lo. Que dia é hoje? Não sei, apenas sei que é quinta-feira. Levanto e recolho meus pertences, um papelão que servia como uma cama e um cobertor azul, velho e encardido que cobria apenas metade do meu corpo. Coloco-os em meu carrinho de supermercado (esse que achei anos atrás perto de uma caçamba de lixo).
Empurro meu carrinho pelas ruas enquanto vasculho os lixos. Faz anos que essa é a forma que ganho uns trocados. Vocês ficariam surpresos com coisas as pessoas se desfazem no lixo. Já encontrei de tudo. Sapato novo, pizza inteira, violão, panelas, pratos, até roupas novas já achei. Mas o que eu gosto mesmo de achar são as latas e garrafas pet, para assim vendê-las e pegar um dinheirinho.
Sei que desde que me conheço por gente vivia em São Paulo, fazendo a mesma coisa que faço agora: catar lixo. Acho que o quebra cabeça da minha vida foi feito com muito mais partes do despejo da vida dos outros do que as minhas próprias. Sei que fui até o Rio de Janeiro, andando e pegando caronas na estrada. Sempre ouvi que essa é a cidade maravilhosa, e concordo. Não sei onde nasci, mas com total certeza morrerei nesta cidade. Nunca conheci meus pais ou sequer tive algum tipo de relacionamento, e acho melhor assim. Creio que laços de carinho e afeto cabem apenas para as pessoas comuns, diferentes de mim que nasci sem rumo e sem escolha de quem posso ser. Sou apenas um invisível dentre os invisíveis.
Me encontro na caçamba de sempre e começo a vasculhar. Algumas latas de refrigerante aqui, garrafas pet de suco ali. Ótimo, hoje o dia está rendendo bem. Será que alguém jogou fora alguma comida? Era tudo que faltava para o dia ser perfeito. Vejo algo brilhando dentro do lixo. O alcanço com a minha mão direita. Uma arma. Um revólver? Nunca havia visto uma assim tão de perto, o máximo que já vi foi o cabo da arma de um policial em um coldre. A arma é fria e extremamente prateada. Está apenas um pouco suja com o lixo nas partes do cabo e do gatilho. É bem pesada também, mais do que eu achei que seria. Será que está carregada? Abro o tambor e vejo duas balas.
Será que usaram aqui perto e jogaram no lixo? Mataram alguém? Eu fico com ela? Isso poderia mudar a minha vida… posso fazer coisas com essa arma, posso enfim ter um pouco de poder que nunca tive antes em minha vida. O tipo de poder que decide sobre a vida dos outros.
Olho para os lados e percebo que uma velha senhora, bastante arrumada e com uma bolsa de marca luxuosa está vindo na minha direção. O que eu faço? Eu devo realmente fazer isso? Ela está vindo, tenho que agir logo, não vou ter outra chance. É agora ou nunca. Isso tudo vai acabar com meu sofrimento.
Saio do local e entro na rua mais próxima. Não tem movimento algum. Coloco a arma em minha cabeça e atiro.
Obs: o conto não tem título de propósito.