Quem sou eu? Eu sou muitas.

Fiquei pensando no deus Sonho e no poder das interpretações. O sonho é uma mensagem do inconsciente, são lembranças do passado ou avisos do futuro? O sonho é a nossa vivência, nossa subjetividade e os alertas do universo para nossa significância neste planeta? O sonho é a mistura nonsense do dia que se foi?

O sonho é nada, exceto mistério.

Nessa noite, eu estava com minha filhinha no banco de trás e meu marido dirigia. Ele parou para resolver algo e, quando olhei para a casa ao lado de onde estacionamos, memórias fortes vieram à cabeça. Era algum ano de 1960.
Desci do carro, arrumei meu vestido e cabelo, como se precisasse retocar qualquer coisa que não a minha confiança.

— Espere aqui. Não saia deste carro para nada, entendeu? — falei à minha filha, sentada no banco de trás.
A bebê nem tinha como responder direito, de tão pequena, apenas me olhou.

Passei pela vitrine de uma loja e me olhei no espelho, tal qual minha filha me fitou. Eu era diferente. Eu era eu, mas outra.

Entrei na casa, que eu sabia qual era. Seus corredores me eram familiares. A dona achou que eu queria a vaga de governanta e eu a segui pela casa, até que chegamos à espaçosa cozinha.

—  Lá no quintal, tá vendo? — apontou pela janela — minhas crianças, Juca e Luísa, o cachorro, Dario…

Olhei para aquela cena inocente com saudosismo e medo. Medo porque as próximas palavras da mulher me dominaram de pavor.

— Meu marido está trabalhando na biblioteca, mas eu posso adiantar que esperamos de você total comprometimento com a organização da casa…

Não sei como, mas eu sabia que ela era a terceira esposa dele. Tremi só de pensar no destino desta nova aquisição

Continuei caminhando e vi em um quarto outra mulher, antes cheia de vida, esposa anterior. Estava catatônica. Lembro-me dela cheia de vitalidade, audaciosa, e agora estava ali, presa naquela cama, com as visitas indesejadas do agora ex-marido entre suas pernas, na sua boca, nos seus pensamentos.

A mulher atual sabia. Sentia. Que desespero de “vida”.

Foi então, pensando na ponte que ligava todas as mulheres, que eu o vi descendo as escadas. Sempre acima, como sempre foi. Mas, agora, menos bonito. O poder do tempo pairando sobre ele.

Em desespero, saí correndo, entrei rapidamente no carro, fechei com força a porta e imaginei que minha saída dali fosse triunfante.

Mas não, não foi.

Quem sou eu? Eu sou muitas.

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