O filme Pequena Miss Sunshine (2006) é uma comédia americana que conta a história de uma família que segue numa viagem de kombi para um concurso de beleza em que Olive, a criança da família, quer participar. Uma história leve, engraçada e dramática. O roteirista foi feliz ao colocar como cena de abertura a personagem da Olive de frente para uma televisão assistindo a um concurso de beleza e imitando a expressão da miss vencedora. Uma imagem que revela o desejo da personagem e a trajetória que vamos acompanhar nesta jornada. A trama continua e somos apresentados a todos os membros da família com uma economia eficaz na abordagem. O pai, Richard, é um coach que tenta alavancar a carreira falando sobre sucesso, mas está num auditório com pouquíssimas pessoas. Dwayne, o filho, é um jovem magro e sem motivação que deseja entrar para as forças aéreas e por isso fez voto de silêncio até que passe na prova. Edwin é o vovô que cheira pó e é desbocado. Sheryl é mãe e mulher da casa que anda agitada e sufocada com tantas tarefas que faz para todos. Frank é o irmão de Sheryl que tentou se matar e acaba de voltar da clínica. Uma apresentação de personagens que transmite uma única mensagem: estamos diante de uma família de fracassados. A habilidade do roteirista é evidenciada ao apresentar personagens contrastantes entre o desejo que cada um possui contra o estado atual.
A jornada prossegue e Olive recebe ligação do qual consegue participar de concurso de beleza e assim o incidente inicial impulsiona a narrativa para a jornada que iremos acompanhar. Todos os ingredientes estão prontos para temperar uma trama cheia de conflitos, afinal, uma família de fracassados e com atritos, partindo juntos numa kombi para uma viagem, tem tudo para dar errado. E aqui preciso destacar como o roteirista trabalha com Olive, a personagem motivadora da trama. Ela usa óculos grande e é gordinha, o oposto do que os concursos de beleza exigem como padrão. Essa é uma das formas eficazes de gerar dúvida no público porque levanta uma questão dramática: ou ela perderá o concurso por não se encaixar no modelo ou ela vencerá por qualquer outro trunfo que não seja a beleza padronizada da mídia (uma mensagem do tipo “seja você mesmo que sempre dá certo”). Prossigamos e vejamos qual o caminho tomado pelo roteirista e se foi eficaz ou não para a história.
Enquanto a viagem progride as relações conflituosas entre a família vai crescendo e cada personagem revela um pouco mais de si com seus desejos e frustrações. É muito interessante notar a relação deles e de como cada um tenta solucionar o problema dos outros conforme suas limitações e experiências de vida. Richard, por exemplo, é motivado e acredita no poder das palavras positivas enquanto que Edwin, o vovô, já acionou o botão: não ligo mais para nada e por isso ele cheira pó às escondidas. Após saída de cafeteria, a kombi dá problema e eles se juntam para empurrar e fazê-la pegar com um sistema improvisado que consiste em cada um entrar aos poucos enquanto a kombi acelera (pôster do filme). Com isso temos o primeiro momento de leveza da família. Isso é importante porque o roteirista nos dá uma pequena prova da mensagem do filme: perdedores, mas juntos. A jornada continua e as complicações aumentam: Richard não consegue investimento para o livro dele e a questão financeira da família fica cada vez no vermelho. Richard precisa aceitar que perdeu e que as frases motivacionais não funcionam para sempre. Porém, uma fatalidade no meio da história faz com que todo o plano venha a ruir: a morte de Edwin, o vovô doidão.
A beleza da trama consiste em mostrar que apesar das diferenças, dos atritos, dos conflitos, das oposições, é possível aproveitar as aventuras da vida através do apoio familiar mútuo.
O impacto emocional dessa reviravolta nos personagens somado com a falta de dinheiro para tirar o corpo dali fazem com que a esperança do concurso fique sombria e mais distante. Neste ponto, conhecido como midpoint, temos uma espécie de morte do personagem. Não há mais saída. Contudo, neste mesmo ponto temos a ressurreição do personagem, mas desta vez completamente transformado. Richard sugere que a família roube o corpo e fuja com ele para não pagar a estadia no hospital e toda aquela papelada burocrática. Uma sugestão que não viria do personagem de Richard na primeira metade do filme, mas como ele está mudado torna-se perfeitamente plausível porque muita coisa aconteceu e uma atitude precisava ser tomada pelo líder da família. O plano dá certo e eles fogem dali.
Finalmente o concurso chega e as apresentações começam. As candidatas mirins são excepcionais com talento na voz e na performance. Essa construção nos dá receio pela Olive porque a roupa que ela veste, masculina e engraçada, é completamente estranha para o que costumam ver nesse tipo de evento. E Dwayne é o personagem que, como voz do público, alerta sobre o perigo de Olive ser humilhada no concurso. Olive segue seu caminho e apresenta. É interessante perceber como a personagem de Olive, por ser uma criança, é ingênua e pensa estar arrasando, afinal, foi o vovô dela que ensinou a dança que é uma espécie de strip-tease, mas claro, sem nudez e tanta sensualidade. O público fica chocado com o que vê e não aplaude. A família percebe e começa a aplaudir Olive. Depois entram no palco junto com ela. Uma situação constrangedora, mas que revela como às vezes é preciso sair da zona de conforto para ajudar o próximo. Olive não vence o concurso, mas completa o objetivo de dançar e participar do evento.
A mensagem final do filme é sobre ser você mesmo, sobre quebrar as convenções e também sobre não seguir o padrão. Também nos traz reflexão sobre a união de uma família cheia de problemas, mas que permanece junta, deixando claro que é possível caminhar de mãos dadas com espinhos aqui e ali. Lembram que tracei uma questão dramática dos dois possíveis caminhos que o roteirista poderia tomar na história? “Ou ela perderá o concurso por não se encaixar no modelo ou ela vencerá por qualquer outro trunfo que não seja a beleza padronizada da mídia”. Pois bem, a saída dele foi a mais eficaz por um simples motivo: verossimilhança. Se Olive vencesse o concurso por causa da ousadia, o público não aceitaria por saber que no mundo real não é assim que funciona (Olive usa óculos e é gordinha – oposto do padrão de beleza). Ao seguir o caminho da perda do concurso (negativo) em troca da conquista de finalmente poder se divertir e dançar como ela queria (positivo), o roteirista nos entrega um final satisfatório que nos lembra que às vezes não nos encaixamos em certos parênteses e que tá tudo bem porque o importante é ser você mesmo.
Legal a sua análise! Essas observações, por meio do roteiro, são muito interessantes. Pessoalmente, gostei da escolha do filme para análise, pois a mensagem que o filme passa é essa, mesmo, de nos aceitarmos como somos e sairmos da zona de conforto. O mundo está precisando disso. 🙂