As chuteiras da minha mãe

As chuteiras número 34 da minha mãe. Arquivadas. 

Memórias de pés que tinham asas, mas, que pisavam duro quando enfurecidos. Ouvia se aproximarem acompanhados de sua respiração raivosa prestes a explodir em alguém. Poucas vezes em mim que já sabia prevenir ou prever, desde o ventre, e assim, evitar os combustíveis – a maioria das vezes. Mesmo assim, eu sentia medo. Eu sempre tive medo da minha mãe. Na mesma proporção que tive orgulho. E inveja de sua coragem!

Herdei suas chuteiras. Herdei seu pequeno tudo acumulado na verdade, e, entre esse tudo, suas chuteiras. Quase tudo. Não herdei sua coragem.

Um pouco gastas, as chuteiras já não entravam em campo tanto quanto outras tinham entrado, com a coragem que não herdei. Estão guardadas junto com cartões vermelhos e amarelos, o apito, bandeirinhas, uma bola cheia de assinaturas de não-sei-quem. As camisas-uniforme eu dei de presente para uma amiga-irmã dela, a quem chamei de tia por muito tempo. Eram muitas camisas. Foram distribuídas como lembrança entre os merecedores, no julgamento da tia Adri.

As chuteiras não serviriam em nenhum pé conhecido a não ser os meus, que não se atrevem nos campos. Talvez servissem nos pés de alguma criança, poderia ter sido caridade. Só que, sendo os pés da minha mãe nossa maior semelhança física, me senti motivada a guardá-las para lembrar disso.

Será que esquecemos as semelhanças e diferenças em algum momento?

Esquecemos tudo em algum momento, não tenho dúvidas! O esquecimento se faz quando ressignificamos contando o que foi com o olhos do depois, penso comigo.

À diferença dos meus, entretanto, os pés da minha mãe tinham asas. Ela se aproveitou disso e voou. E quando aterrissava, colocava as chuteiras, entrava em campo, impunha os gestos, ditava as regras, ouvia os palavrões e os devolvia com a mesma força que assoprava o apito. Apontava o meio do campo e o rosto mudava. Então vinha a gargalhada, a festa, as asas.

Voou por outros lugares, por outros motivos. Aterrissou com outros sapatos. Os pés de Cinderela não lhe garantiam o tipo princesa. Era uma espécie de rainha guerreira, meio amazona, meio vilã até. Também se assumia a bruxa solitária do meio da floresta, feiticeira misteriosa que ninguém lê o pensamento. Livre libriana, abria as asas dos pés com sua chuteira na mochila e ia.

As chuteiras não contam nenhuma história que eu tenha assistido. Não essas que tenho guardadas. Enquanto ela coadjuvava nos pés protagonistas as aventuras que eu nunca vou saber quais foram, meus pés chacoalhavam em um all stars desbotado, e minha mente conhecia aventuras de personagens que não eram minha mãe. Meus pés 34, estacionados na biblioteca pública, nunca voaram ou entraram em chuteiras.

Poderia experimentar colocar as chuteiras nos meus pés, mas parece ser heresia. Continuo com medo mesmo sabendo que nada vai acontecer. E tenho sido herege com tanta coisa, desde sempre, que até me sinto tola e desafiada por mim mesma. Talvez eu tenha mais receio dos olhos de descaso da minha mãe do que da sua aprovação ou reprovação do gesto. Nem sei se acredito que seus olhos estejam me vendo. Tenho certeza dos meus, ensinados a serem julgadores e punitivos para evitar a surpresa.

As chuteiras continuam no museu afetivo e particular que só fará sentido para mim. As asas, que eram mais importantes, foram com os pés, debaixo de um monte de flores, descalços e geladinhos, como pude conferir. Assim como as mãos, estavam parados. Só ali estariam assim.

Dos objetos que dizem, entretanto, as chuteiras da minha mãe fazem parte do grupo que diz coisas que nunca vou entender. Tenho quase certeza que, quando eu menos esperar, cansadas de esperar e sem serem entendidas, elas levantarão voo e desaparecerão por aí.


Atividade realizada na disciplina “Fundamentos da Escrita Criativa”, Profa Dra Moema Vilela. Proposta: produção a partir da escolha de um objeto de ressonância emocional.

Algumas notas sobre a escolha do objeto:

  1. Uma constatação digna de terapia é a de que só não sou classificada como acumuladora porque sou organizada. Toda espécie de cacareco que ouvi minha avó dizer a vida toda que só servia para juntar pó está espalhada em todo canto de minha casa, pendurada em paredes, apoiada em prateleiras, distribuída em armários, mesas, enfim. Logo, haviam muitos objetos.
  2. Minha avó tem razão e essa tranqueira toda junta bastante pó. Por isso, talvez, eu tenha certa predileção – entre os artefatos classificados como eletrodomésticos – pelos aspiradores de pó. No plural. Poderia ter escrito sobre eles.
  3. A gente guarda porque tem espaço. Às vezes esse espaço não é físico. Às vezes esse espaço é só um vazio. Às vezes não.
  4. Escolhi um objeto de ressonância emocional porque anotei “um objeto de ressonância emocional” e gostei de como ele ressoou em mim

About Mayara Yamanoe

professora, camarada, constante estudante, preocupada&cansada, péssima com definições e sínteses. tem medo de se conformar. ama palavras e seus abrigos.

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